domingo, 27 de dezembro de 2009

Conto de Natal

Dezembro, efectivamente, tinha-se posto um mês bastante frio. A neve cobria os campos, os telhados das casas e os ramos dos abetos. Arrepiava-se só de imaginar a borrasca, mas, apesar do mau tempo, os indivíduos mantinham os seus hábitos e as suas necessidades. A avó da menina, por exemplo, estava doente e necessitava de um pote de manteiga como de pão para a boca, como costuma dizer-se, a fim de barrar os vergões que ganhara nas nádegas por passar tanto tempo sentada da cadeira de baloiço, sem mais nada que fazer do que ler os tijolos do Dan Brown. Telegrafou à filha, a qual, diligente, ordenou à menina que atravessasse o temporal montada num burrico para levar a manteiga à avozinha. A tigela de manteiga foi acomodada num cestinho de verga (que levava também meio bolo-de-mármore e uma posta de bacalhau de cura amarela) e a menina pôs-se a caminho, agasalhando-se como pôde, com um casaquinho de fazenda e um barretinho de lã vermelha na cabeça. Na floresta, a menina do barretinho vermelho encontrou o Pai Natal. Ele tinha um ar muito vicioso e celerado, com umas barbas esgrouviadas e um olhar demente. Era muito feio e devia ser também muito mau:

- Para onde você vai?
- Vou à casa da vovozinha, que está muito doente, levar-lhe a manteiga da mamãe.
- Onde fica a casa de sua avó?
- Naquela curva do caminho logo depois da ponte de pedra.
- Sei muito bem onde é. — disse o Papai Noel. — Essa velha é boazuda pra cacete.

A história, como se sabe, não termina nada bem. O Pai Natal fez companhia à menina, com o fito (muito perverso) de surpreender a velha, mas a avó da barretinho não queria voltar a vê-lo nem barrado com mostarda de Dijon (também não gostava de bacalhau de cura amarela). Muito contrariado, o Pai Natal ponderou comer a menina, mas entretanto vieram os lobos e, logo após, os caçadores. Pôs-se ali uma cena selvagem e muito desagradável, com tiros, gritos e uivos, findo a qual se contabilizaram várias baixas: dois lobos feridos com gravidade, um caçador perneta e o Pai Natal irremediavelmente morto e bastante desfigurado.

- Era muito feio e desagradável, mas beijava muito bem e talvez fosse, afinal, um bom homem – condoeu-se a avozinha, acometida, sem dúvida, pelo pontiagudo remordimento da culpa.

Contado assim ninguém acredita, mas, felizmente, o Pai Natal quis tirar um retrato com a menina do barretinho vermelho no gnomo do photomaton. A avozinha guarda religiosamente a imagem que demonstra a verdade inquestionável de todos os factos aqui narrados. Tem-na num passpatour que está em cima do psiché.

(clicar na imagem para ampliar, sff)

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Take My Heart Back

Música do dia: "Take My Heart Back" cuja letra foi composta por Jennifer Love Hewitt e a melodia por Chris Canute. Esta música faz parte da trilha sonora do filme Reviver o Futuro (cuja resenha pode ser encontrada no Béria - a Beh). O vídeo está neste sítio e a tradução neste.

It'll be alright
You said: Tomorrow
Don't you cry

Don't you shed a tear
When you wake up
I will still be here
When you wake up
We'll battle all your fears

And now I'll...

Take my heart back
Leave your pictures on the floor

Still back my memories
I can't take it anymore
I've cried my eyes out
Oh,and now I face the years
The way you loved me
Vanished all the tears


Just a little more time
was all we needed
Just a little time for me to see
Oh, the light that life can give you
Oh, how we get such a free
So now I'll...

Take my heart back
Leave your pictures on the floor

Still back my memories
I can't take it anymore
I've cried my eyes out
Oh,and now I face the years
The way you loved me
Vanished all the tears

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Ponto de Luz

Música do dia: "Ponto de Luz" composta por Sara Tavares. O vídeo está neste sítio e a letra neste.

Escutando no vento...
Tua voz secreta...

Que me sopra por dentro
Deixa me ser só seu...
No teu colo eu me entrego,
para que me nutras
E me envolvas ,

deixa me ser só seu ...

Um ponto de luz .,
que me seduz,
aceso na alma...
Um ponto de luz que me conduz,
aceso na alma...

Por trás dessa nuvem,
Ardendo no céu
O fogo do sol...
eternamente quente.

Liberta me a mente,
liberta me a mente ....



Um ponto de luz que me seduz
aceso na alma...
Um ponto de luz que me seduz
aceso na alma...


segunda-feira, 22 de junho de 2009

You Belong to Me

Música do dia: "You Belong to Me" originalment composta por Pee Wee King, Redd Stewart e Chilton Price. A versão do vídeo e minha preferida, no entanto, é cantada por Jason Wade, da banda Lifehouse, e participou do trilha do filme Shrek. O vídeo está neste sítio e a tradução neste.

See the pyramids around the Nile
Watch the sunrise from a tropic isle
Just remember darlin all the while,
You belong to me.

See the market place in old Algiers
Send me photographs and souveniers,
Just remember when a dream appears,
You belong to me.

And I'll be so alone without you,
Maybe you'll be lonesome too.

Fly the ocean in a silver plane,
See the jungle when it's wet with rain.
Just remember til you're home again
You belong to me.

Oh I'll be so alone without you,
Maybe you'll be lonesome too.

Fly the ocean in a silver plane,
See the jungle when it's wet with rain.
Just remember til you're home again
You belong to me.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Aonde?...


Ando a chamar por ti, demente, alucinada,
Aonde estás, amor? Aonde... aonde... aonde?...
O eco ao pé de mim segreda... desgraçada...
E só a voz do eco, irônica, responde!

Estendo os braços meus! Chamo por ti ainda!
O vento, aos meus ouvidos, soluça a murmurar;
Parece a tua voz, a tua voz tão linda
Cantando como um rio banhado de luar!

Eu grito a minha dor, a minha dor intensa!
Esta saudade enorme, esta saudade imensa!
E Só a voz do eco à minha voz responde...

Em gritos, a chorar, soluço o nome teu
E grito ao mar, à terra, ao puro azul do céu:
Aonde estás, amor? Aonde... aonde... aonde?...

Florbela Espanca
Poema "Aonde?..." in O Livro D'Ele (1915)

domingo, 31 de maio de 2009

Canção

Hoje venho dizer-te que nevou
no rosto familiar que te esperava.
Não é nada, meu amor, foi um pássaro,
a casca do tempo que caiu,
uma lágrima, um barco, uma palavra.

Foi apenas mais um dia que passou
entre arcos e arcos de solidão;
a curva dos teus olhos que se fechou,
uma gota de orvalho, uma só gota,
secretamente morta na tua mão.

Eugénio de Andrade
Poema "Canção" do livro As Palavras Interdidas (1951)

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Busca Silenciosa

Trago a vós um poema belíssimo que me foi mostrado pelo próprio autor, que prefere ficar anónimo.
    Amor,
    quão belo é esse sorriso
    que guardas dentro de ti
    que de tão leve,
    tão doce,
    tão altivo
    faz os ceus e as terras estremecerem.

    Amor,
    qual a fonte de tanta simpatia
    que espalhas pela terra
    pelos mares
    pelos oceanos


    Numa ansia terrena
    almejo sentir
    sem medo, sem receio algum de cair
    somente
    para sentir o odor dessa bela rosa
    que guardas dentro de teu peito
    e que me faz prosseguir.


    Porque no fim,
    apenas escolhes-te o amor e uma rosa.

sábado, 23 de maio de 2009

Universe & U

Música do dia: "Universe & U" da KT Tunstall, lançada no álbum Eye to the Telescope em 2004. O vídeo está neste sítio e a tradução neste. Apreciem!

A fire burns, Water comes
You cool me down
When I'm cold inside
You are warm and bright

You know you are so good for me
With your child's eyes
You are more than you seem
You see into space
I see in your face
The places you've been
The things you have learned
They sit with you so beautifully

You know there's no need to hide away
You know I tell the truth
We are just the same
I can feel everything you do
Hear everything you say
Even when you're miles away
Coz I am me, the universe and you

And just like stars burning bright
Making holes in the night
We are building bridges

You know
When you're on your own
I'll send you a sign
Just so you know
I am me, the universe and you

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Despedida...

Povo de Orfalés, o vento leva-me a deixar-vos.

Sou menos apressado que o vento, no entanto devo ir.

Nós, os errantes, sempre em busca de caminhos solitários, não acabamos um dia onde o tivermos começado; e nenhum nascer do sol nos encontra onde o pôr do sol nos encontrou. Viajamos mesmo enquanto a terra dorme. Somos as sementes da planta perene; e é na maturidade do nosso coração e na sua plenitude que nos entregamos ao vento.

Breves foram os meus dias entre vós, e ainda mais breves as palavras que preferi. mas se acaso a minha voz desaparecer dos vossos ouvidos e o meu amor se desvanecer na vossa memória, então eu voltarei. Sim, eu voltarei com a maré, e, embora a morte me possa esconder e o grande silêncio envolver-me, na mesma procurarei a vossa compreensão. E não será em vão essa procura.

Vou com o vento, povo de Orfalés, mas não vou no vazio, e se este dia não é o preenchimento dos vossos desejos e do meu amor, então deixai que seja uma promessa para outro dia.

As necessidades do homem mudam, mas não o seu amor, nem o desejo de que o seu amor satisfaça as suas necessidades. Ficai a saber que, do grande silêncio, eu voltarei.

Eu dei-vos menos que uma promessa, e no entanto, fostes bem mais generosos comigo.Destes-me a minha mais profunda sede da vida. Não existe maior dádiva para um homem do que aquela que transforma todas as suas metas em lábios ardentes e a vida numa fonte. E é aqui que está a minha honra e a minha recompensa, pois quando eu vier beber à fonte encontrarei a água viva também sedenta; E beber-me-à enquanto eu a beberei.

Alguns de vós acharam-me orgulhoso e tímido para receber as vossas oferendas. Sou na verdade demasiado orgulhoso para receber dinheiro, mas não dádivas. E embora tenha comido bagas no meio das colinas, enquanto vós terieis preferido que me sentasse ao vosso lado, e dormido à porta do templo quando me teríeis acolhido de bom grado no vosso lar. No entanto, não foi o vosso carinhoso interesse pelos meus dias e pelas minhas noites que tornou os alimentos doces na minha boca e encheu o meu sono de visões?

Por tudo isto vos abençoo: Vós dais tudo sem saber que estais a dar. Na verdade, a bondade que se olha ao espelho transforma-se em pedra, e uma boa acção que se chama a si mesma belos nomes torna-se uma praga.

E alguns de vós chamastes-me distante, embriagado com a minha própria solidão, e dissestes, "Ele fala com as árvores da floresta mas não com os homens. Ele senta-se sozinho no topo das colinas e olha cá para baixo para a cidade." A verdade é que subi às colinas e andei por locais remotos. Como poderia ter-vos visto senão de uma grande altura ou de uma grande distância?

Como se pode estar perto se não se estiver longe?

Pois quando as minhas asas se abriram ao sol, a sua sombra na terra foi uma tartaruga. E eu, o crente, também fui o descrente; Muitas vezes coloquei o dedo sobre a minha própria ferida para ter mais fé em vós e maior conhecimento de vós.

Se estas forem palavras vagas não procureis clarificá-las. Vago e nebuloso é o inicio de todas as coisas, mas não o seu fim, e eu gostaria que me lembrasseis como um princípio.

É isto que eu gostaria que recordasseis quando vos lembrardes de mim: Que aquilo que parece mais fraco e débil em vós é o mais forte e mais determinado.

Adeus, povo de Orfalés.

Este dia chegou ao fim.

Fecha-se sobre nós como o nenúfar sobre o seu próprio amanhã. Aquilo que nos foi dado aqui, conservaremos, e se não for suficiente, então teremos de nos juntar novamente e estender as mãos ao doador. Não vos esqueçais que voltarei para junto de vós.

Adeus a vós e à juventude que passei convosco. Foi só ontem que nos encontrámos num sonho. Cantástes para mim na minha solidão, e dos vossos desejos construí uma torre no céu. Mas agora o nosso sono voou e o nosso sonho chegou ao fim e já não é aurora. O meio dia está sobre nós e o nosso meio despertar tornou-se pleno dia e devemos separar-nos. Se no crepúsculo da memória nos encontrarmos mais uma vez, voltaremos a falar e cantareis para mim uma canção mais profunda...


(extraído do livro "O Profeta" do autor libanes Khalil Gibran)

domingo, 5 de abril de 2009

Telepatia

Música do dia: "Telepatia" da Lara Li. Esta música tem versões em várias vozes, entre elas a de Rui Veloso. A minha favorita no entanto, cujo vídeo está neste sítio, é a versão na voz de Rui Drummond e Sofia Barbosa para a sétima rodada do concurso Operação Triunfo 1.

Telepatia, silêncio, calma
Feitiçaria da tua alma
Passo a passo, sem ter medo
Abrímos, soltámos o nosso segredo

E a sorrir devorámos o mundo
Num abraço tão profundo

Telepatia, sem contratempo
Deixei-te um dia, num desalento
E eu sonhava, existia
P'ra sempre, p'ra sempre foi pura poesia

Sem pensar não vi que passavas
Pelo meu corpo não ficavas

E a sorrir devorámos o mundo
Num abraço tão profundo

Telepatia, silêncio, calma
Feitiçaria da tua alma
Telepatia
Telepatia....

Madrigal


Tu já tinhas um nome, e eu não sei
se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.

II

Cantas. E fica a vida suspensa.
É como se um rio cantasse:
em redor é tudo teu;
mas quando cessa o teu canto
o silêncio é todo meu.

Quase Madrigal

Os anjos que prometes são apenas
o rosto triste dos dias desolados.
Eu não prometo nada, sou alegria.
Aceito os anjos nos beijos que me dás,
pondo rosas nos teus dedos descuidados.


Eugénio de Andrade
Poemas "Madrigal" e "Quase Madrigal"

quinta-feira, 12 de março de 2009

Sensível Demais

Música do dia: "Sensível Demais" da Nalanda, que fez parte da trilha da novela Chocolate com Pimenta. Podes ver o vídeo neste sítio.

Hoje eu tive medo
De acordar de um sonho lindo
Garantir, reter, guardar essa esperança
Ando em paraísos, descaminhos, precipícios
Ao seu lado vejo que ainda sou uma criança

Sensível demais. Eu sou um alguém que chora,
Por qualquer lembrança de nós dois
Sensível demais. Você me deixou e agora
Como dominar as emoções?

Quando vem á tona todo amor que esta por dentro
Chamo por teu nome em transmissão de pensamento
Longe a tua casa vejo a luz do quarto acesa
Não tem nada que não vaze que segure essa represa

Sensível demais. Eu sou um alguém que chora,
Por qualquer lembrança de nós dois
Sensível demais. Você me deixou e agora
Como dominar as emoções?


Nalanda

quarta-feira, 11 de março de 2009

Cantos indecisos

    Amo-te e não te vejo;
    Nunca te vi, amor...
Muito embora te abrace minha dor;
O fantasma ao luar do meu desejo...
    Só ele te conhece
E divaga na noite que te esconde;
    Noite sem fim, lá onde
Numa estrela se muda cada preçe.
Só ele te contempla o etéreo rosto,
Moldado em oiro e bruma do sol posto;
    Lágrima sempre acesa
No crepúsculo roxo da tardinha...
É assim que me desejo te advinha
    Em longes de tristeza.
Que o meu desejo é a sombra do meu ser
    Errando, a padecer,
    Lá onde tu existes,
Tão viva que és apenas sentimento,
    Ideal deslumbramento,
E uns grandes olhos negros sempre tristes...

Teixeira de Pascoaes
Poema "XXXIV" do livro Cantos Indecisos (1921)

sexta-feira, 6 de março de 2009

Problema de expressão

Música do dia: "Problema de expressão" da banda portuguesa Clã. Esta música foi lançada no CD Afinidades. O vídeo se encontra nesta página do youtube.


Só pra dizer que te Amo,
Nem sempre encontro o melhor termo,
Nem sempre escolho o melhor modo.

Devia ser como no cinema,
A língua inglesa fica sempre bem
E nunca atraiçoa ninguém.

O teu mundo está tão perto do meu
E o que digo está tão longe,
Como o mar está do céu.

Só pra dizer que te Amo
Não sei porquê este embaraço
Que mais parece que só te estimo.

E até nos momentos em que digo que não quero
E o que sinto por ti são coisas confusas
E até parece que estou a mentir,
As palavras custam a sair,
Não digo o que estou a sentir,
Digo o contrário do que estou a sentir.

O teu mundo está tão perto do meu
E o que digo está tão longe,
Como o mar está do céu.

E é tão difícil dizer amor,
É bem melhor dizê-lo a cantar.
Por isso esta noite, fiz esta canção,
Para resolver o meu problema de expressão,
Pra ficar mais perto, bem mais de perto.
Ficar mais perto, bem mais de perto.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Feels Like Home

Música do dia: "Feels Like Home" da Chantal Kreviazuk, que faz parte da trilha do filme How to Lose a Guy in 10 Days. A tradução está neste sítio e o video está aqui.

Something in your eyes makes me want to lose myself
Makes me want to lose myself in your arms
There's something in your voice
Makes my heart beat fast
Hope this feeling lasts the rest of my life

If you knew how lonely my life has been
And how long I've been so alone
If you knew how I wanted someone to come along
And change my life the way you've done

Feels like home to me
Feels like home to me
Feels like I'm all the way back where I come from

Feels like home to me
Feels like home to me
Feels like I'm all the way back where I belong

A window breaks down a long dark street
And a siren wails in the night
But I'm alright cause I have you here with me
And I can almost see through the dark there's light
If you knew how much this moment means to me
And how long I've waited for your touch
If you knew how happy you are making me
I've never thought I'd love anyone so much

Feels like home to me
Feels like home to me
Feels like I'm all the way back where I come from

Feels like home to me
Feels like home to me
Feels like I'm all the way back where I belong
Feels like I'm all the way back where I belong

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Ser Poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhas de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dize-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca
Poema "Ser Poeta" in Sonetos Completos (1934)
(Uma versão deste poema cantado por Sara Tavares e Nuno Guerreiro, pode ser ouvida nesta página)

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

As Palavras Interditas

Os navios existem e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E abrem-se janelas
mostrando a brancura das cortinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas minhas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
e estas mãos noturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens vivas, desenhadas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

Eugénio de Andrade
Poema "As Palavras Interditas" in As Palavras Interditas (1951)
(Esse poema pode ser ouvido nesta página)

Língua Portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,¹
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Olavo Bilac
Poema "Língua Portuguesa" in Tarde
(Esse post é parte complementar desta reflexão)
____________
1. "A expressão "Última flor do Lácio, inculta e bela" é usada para designar a língua portuguesa, considerada a última das filhas do latim (que nasceu na região do Lácio, na Itália, por isso "flor do Lácio"). O termo inculta fica por conta de todos aqueles que a maltratam ao falar e escrever de forma incorrecta, mas que não a tornam por isto menos bela."